"Nunca quis ter cabelo liso".
Até poderia ser uma verdade, se não fossem as lembranças da infância, quando era zoada pelos amiguinhos, quando as amigas de cabelo liso viravam de lado e batiam o charmoso rabo de cavalo na minha cara... Quando queria imitar a Xuxa. Quando queria ser paquita (mas também precisava ser loira e isto aí já era um longo outro caminho impossível).
Então, devo confessar, cresci querendo ter cabelos lisos, iguais aos da minha mãe, iguais aos das minhas Barbies e Susis...
Mas, quando cresci, queria ter cabelos cacheados, quase iguais aos meus, só que com menos trabalho para cuidar.
Sabe, fazer um coque e poder soltar de novo sem ficar marcado? Poder sair do mar sem precisar colocar um quilo de creme para definir e ele não armar numa arapuca em desalinho.
Poder acordar cedo no inverno de sensação térmica de 7 graus às cinco da manhã e não precisar lavar os cabelos para sair de casa.
Já tinha vivido a experiência de ter cabelos alisados em algumas vezes, de formas variadas: guanidina, touca de gesso, alguma fórmula milagrosa que a cabeleireira vizinha de alguma amiga tinha descoberto no Rio de Janeiro...
Sempre ficavam lisos, mas, mesmo lisos, sempre deram trabalho. Era o liso lindo saindo do salão e que desabava na primeira lavada com shampoo e condicionador dentro de casa.
E não dava para voltar no salão todo dia.
Quem tem mais de 30 anos como eu, sabe também que salão de beleza era artigo de luxo antigamente. Além do mais, eu era jovem e eu dependia dos meus pais financeiramente. Minha mãe tem cabelos lisos e nunca precisou se preocupar em cuidar de cabelos diferentes do dela até eu nascer...
E porque também não existia a internet com todas as dicas de amigas e toda a inclusão e representatividade que o cabelo naturalmente crespo trouxe. Também não existia esta gama maravilhosa de produtos definidores de cachos - dos mais baratos aos mais caros - que encontramos hoje com facilidade em qualquer esquina.
Existia Kolene como único produto que eu me lembre que podia ser deixado nos cabelos além de gel tipo cola, mousse e laquê para fixar (mas este último era usado mesmo em penteados elaborados em cabelos feitos em salão).
Não posso dizer que não tive uma juventude feliz em muitos aspectos, mas foi uma juventude de sofrência capilar.
Até que ganhei da minha tia, na época da faculdade,
a novíssima, famosa e milagrosa escova progressiva!
Como disse antes, eu, depois de crescida, não queria ter cabelos lisos, queria ter cabelos cacheados, mas mais domados. E, pesquisando sobre a tal febre ~cabelística~ do momento, vi uma oportunidade única, já que era um liso temporário, de não me ver dependente de alisamentos quando o cabelo crescesse.
Prometida como um milagre temporário, que apenas suavizava os crespos e saía gradativamente enquanto se lavava os cabelos com shampoo sem sal, era a solução para quem não queria ver a raiz crescida ficando discrepante dos fios alisados quimicamente.
E aceitei o presente e fiz a tal progressiva em um salão num lugar nobre da Zona Sul da cidade de São Paulo.
Saí com os cabelos lisérrimos do salão e, no terceiro dia (era o praxe esperar três dias), depois de lavar, foi uma alegria imensa ver meu cabelo, antes crespo, secar num cacheado solto, leve e sem precisar de quantidades enormes de creme para definir.
Podia prender, podia soltar, podia pegar "vento contra" e era uma felicidade só. O CABELO QUE SEMPRE QUIS em cima da minha cabeça mesmo depois de lavar e secar naturalmente.
Aliás, a maior preocupação era esta: poder ter um cabelo que pudesse secar naturalmente sem dar trabalho, exatamente como todas as pessoas de cabelo "bom" que eu admirava.
Poder viajar sem me preocupar em ter que fazer escova depois do banho naquela casa de praia lotada, poder acordar nesta mesma casa sem me preocupar em olhar no espelho antes de encarar as caras conhecidas de amigos.
E, com esta escova, eu finalmente tinha conseguido isto. Temporariamente. A progressiva era temporária, foi saindo sem brigar com a raiz e o cabelo foi crescendo naturalmente.
Mas isto era no começo dos anos 2000. E, além de fedido, de arder os olhos e (talvez) perigoso,
muito caro refazer. Eu era uma estudante de curso superior em Engenharia em uma faculdade particular, morando sozinha e com pouca grana.
Acabei procurando receitas e me aventurando sozinha na arte de auto aplicar progressiva. Bastava um creme que pudesse deixar no cabelo durante a escovação e chapinha e que servisse de veículo para uma quantidade de formol que vinha misturado.
Pedi para a mesma tia que me deu a progressiva de presente que pedisse para a minha prima que trabalhava num hospital conseguir um pouco de formol puro para mim (
aloka)!
E, enquanto procurava a receita de proporções para progressiva na internet, acabei achando diversos produtos prontos (e razoavelmente baratos) para vender no Mercado Livre.
Era eu mesma me fazendo minhas progressivas.
E ia dando mais ou menos certo, mais ou menos (mais para menos mesmo) satisfatório e minha raiz natural, quando crescia, não costumava brigar com o restante do comprimento dos cabelos.
Daí me formei, fiquei menos pobre, as progressivas progrediram, podiam se lavar no mesmo dia e ficaram mais acessíveis de todas as formas - vários salões fazendo e por um preço bem menor do que a primeira que ganhei de presente.
Só que as progressivas também ficaram mais potentes e, de repente, eu que só queria cabelos com cachos mais soltos,
me vi com os cabelos lisos e que não enrolavam mais quando secavam sozinhos (iguais aos meus desejos de infância), mas cada vez mais diferentes da raiz que crescia.
E como crescia! Meus cabelos (e unhas) sempre cresceram muito rápido. E toda aquela mágica do cabelo liso "acidental" incomodava porque não combinava mais com a raiz crespa que nascia.
Meu
cabelo natural é do tipo 3B ou 3C (há controvérsias quanto a esta definição nas tabelas da internet) na maior parte da cabeça e começa e enrolar depois de 1 cm de raiz. Mas na parte total da franja, eu tenho um cabelinho muito mais crespo, que deve ser 3C ou 4A, e demonstra bastante a diferença entre a parte natural e a parte com química muito rápido - porque já disse, ele cresce rápido.
Então, por isto, mesmo com o cabelo que estava com textura quase lisa, de pontas que não enrolavam, eu sempre continuei a ter muito trabalho.
Não poder deixar secar naturalmente depois de um banho de mar sem me preocupar, ou não poder sair de casa sem apelar para o combo secador e chapinha para dar conta do topo do cabeça.
Imagina que transtorno no mochilão pela Europa tendo que levar secador e chapinha, rezar para a tomada aceitar o adaptador sem queimar, acordar mais cedo que a amiga para arrumar o cabelo quando tudo que você queria era dormir mais um pouquinho, ou desligar a chave geral do apartamento da prima em Paris quando liguei meu secador na tomada e ela nem estava em casa!
E para que o trabalho com a chapinha fosse mínimo, eu tinha então que ficar refazendo a progressiva lisa TODO MÊS! E aí passar pelo processo da descamação e conviver com as casquinhas que criavam na primeira semana da aplicação.
Sim, o cabelo ficava bonito, mas, no início, quando estava liso desde a raiz, ele também estava com caspa.
E cada vez mais ralo. Porque eu, cada vez mais cansada de ter trabalho em igualar raiz com comprimento, diminuía o espaço das idas ao salão para retocar a progressiva.
Cansei.
Decidi que deixaria o cabelo crescer sem fazer mais nada. Mas tão cansada que estava que tinha certeza não aguentaria mais ter que ficar fazendo escova e prancha, num cabelo natural só na raiz, neste período também conhecido por muitas hoje como
transição.
Então, numa época em que o trabalho estava tomando muito do meu tempo (não que eu achasse ruim, mas o corpo cansava), decidi que era a hora de cortar (ou fazer outra progressiva se faltasse coragem).
Uni aqueles sinais do destino que a gente inventa de brincar e apostei comigo que se meu chefe me deixasse sair antes do horário do rodízio do meu carro aquele dia, chegaria cedo aqui em Carapicuíba (onde moro) e iria no salão do meu querido Rogério cortar.
O
Rogério é o cabeleireiro que confio de olhos fechados há pelo menos dez anos. Era também o cara que fazia minhas progressivas muito bem, mas também sabia que não questionaria e passaria a tesoura sem pestanejar ao meu primeiro pedido (se sentisse que era isto que eu queria)!
E foi! Meu chefe deixou, cheguei no salão sem avisar e cortei os cabelos curtinhos!
Que frio na barriga! Agora não tinha mais jeito. Cortei.
Curtinho.
Confesso que ter acompanhado na internet a transição da
Maraisa Fidelis, de lembrar claramente de tê-la visto ao vivo num evento da Maybelline na época, foi uma grande inspiração durante o tempo que ruminei a ideia, porque além de ser uma blogueira que eu acompanho nas redes sociais, eu a admiro muito como pessoa. Quer combo mais completo que isto?
E agora estava acontecendo comigo!
Agora não tinha mais jeito. Estava feito. Era eu e eu.
Não tinha mais cabelão. Não tinha mais penteados diferentes, não tinha mais jeito de puxar uma mecha na frente para disfarçar uma maquiagem mal passada, um cabelo que podia ser preso se ao final de todo o tempo perdido no espelho não tivesse dado muito certo.
Mas também não tinha mais que perder duas horas me arrumando, sendo pelo menos uma hora entre secar e modelar os cabelos antes de sair, cuidar em passar o spray fixador pra não desmanchar assim que saísse de casa (afinal o cabelo liso tendia a desmanchar e a parte crespa a voltar a enrolar), fora ao tempo de lavar e hidratar sempre, bem como o tempo perdido de pegar aquela peruca que ficava no ralo do box a cada chuveirada.
Enfim, mesmo que tivesse ficado insegura, agora eu tinha que encarar minha nova realidade. Ainda sem saber direito o que sentir, resolvi que deveria sair a noite e enfrentar a vida real de uma vez antes de me encontrar com os colegas de trabalho - que acabam sendo aquele vínculo mais forte, além da família - de tanto tempo que passamos juntos. E, como se fosse uma pré estreia, acabei botando meus cabelinhos na rua na mesma noite.
Assumo que, além do medo dos coleguinhas de trabalho (amigos de escola do adulto), também pensei um pouco no que o sexo oposto poderia pensar, afinal, por mais que estejamos mudando e aprendendo a nos valorizar apesar do que a mídia prega constantemente, ainda rola uma insegurança.
Por outro lado, levei em conta o fato de que estar sem namorado era bem bom para esta mudança radical. Quem quisesse gostar de mim, ia ter gostar da nova Carla que estava nascendo aquele dia.
Tudo bem, era
só um corte de cabelo, mas era sim uma mudança drástica para quem só lembra de ter tido cabelo curto em duas vezes na
infância quando peguei piolho na escola. Era mais eu que estava ansiosa (e com medo) da reação das pessoas do que qualquer outra coisa (embora até já estivesse gostando do que via no espelho). E de novo: não tinha mais jeito, já tinha feito. Apesar do medo, me sentia livre.
A confirmação da liberdade veio no primeiro "dia seguinte" depois de uma noite de balada: acordar e cedo e estar com o cabelo pronto foi uma das primeiras surpresas maravilhosas que o cabelo curto me proporcionou.
Mas liberdade propriamente dita é uma coisa. Encarar o primeiro dia de trabalho (e a reação das pessoas próximas) era outra. Mas olha, foram muitos "corajosa" ao lado de muitos ficou "legal", "bonito" e, principalmente, "combinou com você", que meu coração ficou bem quentinho.
Procurei me cercar de pessoas queridas, dentre elas um presente na minha vida, a Tati, e tirei minha
primeira foto ~oficial~ de cabelos curtos (depois de adulta).
A reação das pessoas na internet também surpreendeu. Muita gente querida comentando e gostando. Isto me deu forças.
Claro que o mais importante era EU gostar, mas o carinho recebido me estimulou, sim.
Porque, apesar de ser "só um corte de cabelos", não era "só um corte de cabelos". Agora era eu e minha cara. Sem disfarces. Sem molduras.
E a medida que os dias foram passando, a cada manhã sem ter que levantar uma hora mais cedo para lavar, secar e modelar os cabelos, mais eu agradecia e mais eu me acostumava com o novo visual.
Quando dei por mim, percebi que
tirava mais fotos, que devia estar gostando.
Talvez por ter mais tempo, ou inconscientemente talvez por tentar compensar a "falta" de cabelos, eu me vi me arrumando mais. Sempre fui vaidosa, sempre gostei de moda e, modéstia a parte, sempre tive um olho bom para comprar muita coisa boa e diferente por um preço bacana.
Enquanto descobria milhares de formas de curtir o cabelo que ia crescendo, me dei conta que mantê-lo assim por um tempo seria legal. Porque por mais que a gente diga pra gente mesmo (e pras amigas) que cabelo cresce - e é verdade - o processo num cabelo cacheado/crespo vai demandar algumas técnicas para "domá-los" que eu não estou com vontade de viver agora.
E mais do que não querer deixar o cabelo crescer agora por conta do trabalho que sei que dará e continuará dando com ele comprido:
agora eu quero curtir um pouco a vida com cabelo curto. Está muito bom. Está sendo muito libertador de várias formas.
O primeiro corte foi no começo de setembro do ano passado e, de lá pra cá, já cortei umas quatro vezes. Da última, logo depois do meu aniversário, praticamente zerei a cabeça (sem dó) e foi mais legal ainda (dá pra ver
aqui). Agora em maio (
foto atual), ele está com uns seis ou sete centímetros e está fazendo bastante cachos. E estou usando este "cabelão" para testar cremes, técnicas de lavar e aprendendo e relembrando como meu cabelo é de verdade depois de mais de dez anos na progressiva e outros tantos anos anteriores alternando entre cabelo natural e algum tipo de alisante.
Então, não vai ser este ano que ainda vou deixar crescer. Acho que quero poder fazer uma outra viagem longa sem me preocupar com o cabelo - o carnaval em BH foi uma prévia de como foi bom não ter que ser a primeira a acordar, nem tem que sacar do secador em uma viagem de diversão - mas ainda quero mais.
Quero muitas outras coisas na vida com o cabelo curto. Quero tanta coisa porque talvez, lá no fundo, eu esteja, pela primeira vez na vida, feliz com o cabelo que encontro no espelho sem ter tido pelo menos uma hora de trabalho.
Finalmente eu sou uma daquelas pessoas que eu sentia vontade de ser, que já acordavam com o cabelo pronto!
E, tenho certeza que conhecendo ele, assim que resolver deixá-lo crescer novamente, eu saberei cuidar melhor, para ser mais feliz com o cabelo que está comigo. Ele nunca vai ser liso, ele nunca vai ser aquele cacheado solto que eu sempre sonhei para mim, mas ele pode ser bonito se eu souber cuidar (e tem tanta gente linda inspirando) que eu poderei ser feliz com ele do tamanho que eu quiser.
E atenção: eu não virei radical, a xiita do cabelo natural. Sempre achei e continuo achando que cada uma
pode fazer o que quiser com o próprio cabelo: cortar, fazer escova, permanente, trança, aplique e inclusive alisar.
Mas acho que este último eu não quero mais para mim. Apenas pelos motivos de manutenção e não por nenhuma nova ideologia que eu tenha adquirido.
Com os cabelos curtos, parece um clichezão o que vou dizer: mas descobri em mim tantas coisas boas e, principalmente, que me fez mais feliz, descobri muitas outras formas de me sentir feminina, incluindo com um delicado cabelo curtinho.
Descobri uma outra pessoa que, olhando para trás, parecia escondida em tantas mudanças capilares (meu
vídeo de perfil não nega). Talvez uma nova pessoa, talvez a releitura da Carlinha criança.
Descobri que agora, com cabelo curto ou comprido, eu sou eu, e gosto de mim de verdade, descobri que, no fundo mesmo, é só cabelo. E cabelo cresce.
Descobri tanta coisa boa, que só tenho um arrependimento:
não ter feito isto antes!